[Artigos] É possível votar a inabilitação para o exercício de função pública separadamente?
Na quarta-feira passada, dia 31/08/2016, houve um evento de grande importância na história do nosso país: o Senado Federal afastou definitivamente a ex-presidente Dilma Rousseff do cargo outrora ocupado, por 61 votos a 20, em razão dos crimes de responsabilidade a ela imputados – pedaladas fiscais no Plano Safra e os decretos que geraram gastos sem autorização do Congresso Nacional.
Curiosamente, após a votação definitiva do impeachment, iniciou-se uma nova votação para decidir se seria aplicada, também, a pena de inabilitação por 8 (oito) anos para o exercício de função pública, fato ocorrido sob a condução dos trabalhos de ninguém menos que o Presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Ricardo Lewandowski.
Nesse momento, surgiu uma grave dúvida, tanto no cidadão comum como na comunidade jurídica. Logo foram surgindo os burburinhos em torno da indagação: afinal, pode o Senado Federal decidir pela condenação separada das penas de perda do cargo e de inabilitação para o exercício de função pública?
Para responder a essa pergunta, consideremos as fontes do Direito e façamos uma investigação muito comum em pesquisas jurídicas, lançando mão da clássica tríade: lei, doutrina e jurisprudência.
Prevê o art. 52, inciso I e parágrafo único da Constituição Federal: “perda do cargo, com inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública, sem prejuízo das demais sanções judiciais cabíveis”. No mesmo sentido, a Lei n° 1.079/1950 prescreve em seu art. 2°: “os crimes definidos nesta lei, ainda quando simplesmente tentados, são passíveis da pena de perda do cargo, com inabilitação”.
Breve análise da norma jurídica, extraída desses artigos, revela-nos de maneira clarividente: a pena é de perda do cargo COM inabilitação. Quisesse o legislador decidir pelo caráter dissociável, em detrimento do caráter cumulativo, teria inserido expressão “com ou sem inabilitação” ou outra semelhante.
Assim não o fez.
E o que diz a doutrina?
Gilmar Mendes, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), tem sua posição clara sobre o assunto: “no caso do Presidente da República, os crimes de responsabilidade caracterizam-se como infrações político-administrativas que dão ensejo à perda do cargo e à inabilitação para o exercício de função pública pelo prazo de oito anos”.
Curiosamente, o próprio presidente Michel Temer, que antes de chefiar o Executivo em âmbito federal já era um constitucionalista detentor de certo espaço na doutrina, escrevia as seguintes linhas no ano de 2008: “assim, porque responsabilizado, o Presidente não só perde o cargo como deve afastar-se da vida pública, durante oito anos, para ‘corrigir-se’, e só então pode a ela retornar”.
Além da lei, portanto, a doutrina já possuía entendimento de não se tratar de duas penas em separado, mas de uma pena só: perda do cargo e inabilitação ao exercício função pública.
E a jurisprudência?
No Mandado de Segurança n° 21.689-1, impetrado pelo ex-presidente Fernando Collor, cuja relatoria coube ao então ministro Carlos Velloso, houve também a discussão acerca do caráter acessório da pena de inabilitação ao exercício da função pública.
Houve o entendimento de que as duas penas são principais, apesar de terem sido separadas no caso concreto, diante da renúncia do ex-presidente – tão somente por conta dos contornos e peculiaridades do caso posto sob análise.
O trecho da ementa é bastante enfático: não é possível a aplicação da pena de perda do cargo, apenas, nem a pena de inabilitação assume caráter de acessoriedade.
Considerando a norma jurídica extraída do art. 52, parágrafo único da Constituição Federal combinada com o art. 2° da Lei n° 1.079/50; a posição da doutrina e a existência de precedente do Supremo Tribunal Federal, é possível concluir com tranquilidade que a votação ocorrida no dia 31/08/2016, decidindo em separado sobre a inabilitação ao exercício da função pública, deu-se à margem do entendimento legal, doutrinário e jurisprudencial.
Superando a parte estritamente técnica, receio ter essa votação ocorrido por motivos outros, de cunho político, como logrolling. A ex-presidente pode muito bem deter informações que prejudicariam o mandato de diversos parlamentares ou membros do Executivo ligados ao atual governo – seria essa “benesse” o preço de seu silêncio.
É uma hipótese.
Outra hipótese, que também merece ser considerada, é a tentativa deliberada da criação de um precedente para beneficiar outros políticos que vierem a ser julgados sob o mesmo trâmite, ou trâmite distinto, que tenha o condão de reabrir o debate.
Apenas a título de exemplo, a análise do art. 1°, I, b da LC 64/90 possui inteligência idêntica, de inabilitação por 8 anos. Caso Eduardo Cunha seja cassado, há grandes chances de que, no momento da cassação, deliberem pela perda do cargo, contudo sem inabilitação.
Corretamente, até a última sexta-feira pelo menos 8 (oito) mandados de segurança já foram impetrados questionando a referida votação, que não merece classificação mais branda do que um verdadeiro disparate ao cidadão brasileiro.
Sandro Lucena é Advogado, pós-graduando em Direito Previdenciário, Membro do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário (IBDP), Membro da Comissão de Direito Previdenciário e Securitário da OAB/GO, Membro da Comissão da Advocacia Jovem (CAJ) da OAB/GO, Diretor de Eventos e Projetos do EPL-GO e do Clube Bastiat.