
Uma sentença proferida em 8 de julho de 2025 pela Vara Federal Cível e Criminal da Subseção Judiciária de Luziânia (GO) determinou a conclusão do processo de regularização fundiária da Comunidade Quilombola Mesquita, localizada no município de Cidade Ocidental (GO), a cerca de 50 km de Brasília. Fruto do intenso trabalho do Ministério Público Federal (MPF), a decisão foi tomada no âmbito de ação civil pública ajuizada em 2008, que apontava a omissão do Estado na titulação do território ocupado há pelo menos 270 anos pelo grupo tradicional.
A Justiça reconheceu a validade do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) elaborado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) em 2011 e determinou que o órgão conclua o procedimento de titulação das terras em no máximo de 12 meses. Em caso de descumprimento, foi fixada multa diária de R$ 20 mil. A sentença também estabelece prazos intermediários: 30 dias para publicação da portaria de reconhecimento da área e cinco meses para análise de títulos e avaliações fundiárias.
“A sentença é um marco no processo de reconhecimento e efetivação dos direitos da comunidade quilombola Mesquita. O grupo vem sofrendo há anos por práticas negacionistas e omissões das instituições encarregadas de protegê-lo”, explica o procurador da República José Ricardo Teixeira Alves, atual responsável pela ação. “Essas condutas foram anunciadas e denunciadas por técnicos e peritos nos autos da ação civil pública, indicando um grave quadro de racismo estrutural provindo tanto de setores da esfera pública quanto da privada. É tempo agora de esperança e mudança real desse cenário”, avalia.
Histórico – Com quase 300 anos de história, o Quilombo de Mesquita se origina de uma doação de terras a três mulheres negras alforriadas. A comunidade se formou a partir daí, com tradições que incluem a produção de marmelo e doce marmelada. O grupo se manteve no local mesmo depois do fim do ciclo do ouro em Goiás e desempenhou papel importante na construção de Brasília, trabalhando em canteiros de obras e fornecendo alimentação para os trabalhadores. Atualmente, cerca de 700 famílias estão no lugar e vivem da agricultura familiar enquanto lutam para preservar as tradições e a herança ancestral do grupo.
A área, no entanto, é alvo de intensa especulação imobiliária e invasões, uma vez que está situada na rota de expansão urbana do entorno de Brasília. A disputa envolve atores de grande poder político e econômico, resultou em ameaças de morte a lideranças, além de ações judiciais que questionaram não apenas a demarcação do território, mas própria identidade quilombola da comunidade. Essa campanha de apagamento contou, inclusive, com a participação de autoridades e agentes públicos de Luziânia, apontando para o racismo estrutural e institucional contra o grupo.
O MPF acompanha o caso desde 1998, quando foi instaurado o procedimento administrativo que busca assegurar os direitos da comunidade e resultou na instauração da ACP. “Esse processo é um exemplo do que é a luta pelo território pelas comunidades tradicionais do Brasil”, explica Luis Guilherme de Assis, um dos peritos em antropologia do MPF que atuou no caso.
Os laudos periciais antropológicos e agronômicos produzidos pela equipe do MPF e pela Universidade Federal de Goiás atestam, de forma inequívoca, a singularidade cultural e ancestralidade do grupo, rebatendo os argumentos de que eles não seriam quilombolas. Com a decisão judicial, essa identidade não pode mais ser questionada.
Os documentos reunidos pela perícia traçam a origem da comunidade a partir dos troncos familiares Pereira Dutra, Teixeira Magalhães, Pereira Braga, Lisboa da Costa e Souza Silva, presentes na região desde o século XIX. Analisam marcos territoriais, mapeiam cemitérios familiares, detalham a ocupação e os usos da área, com destaque para a atuação da liderança de Aleixo Pereira Braga. Neto de uma das fundadoras da comunidade, ele foi responsável por organizar o grupo em torno da produção de marmelada nas primeiras décadas do século XX, numa tradição que se mantém até os dias de hoje.
Conflito estrutural – Além de reconhecer o relatório de delimitação da área e ordenar a regularização do território em favor da comunidade, a sentença reconheceu o caráter estrutural do conflito pelas terras, determinando o cumprimento da ordem judicial em duas etapas. A primeira, chamada fase de composição, busca soluções negociadas com terceiros ocupantes da área, com medidas como indenizações, realocações e compensações, além da delimitação de áreas essenciais à preservação do modo de vida do grupo, como cemitérios, locais de culto e mananciais de água.
Já a segunda fase, de cumprimento coercitivo, será aplicada caso não haja acordo entre as partes. Nessa etapa, está prevista a titulação das terras tradicionalmente ocupadas pela comunidade e a desapropriação das áreas ocupadas por terceiros, conforme prevê o Decreto nº 4.887/2003.
A sentença também determinou a suspensão das ações possessórias ou reivindicatórias envolvendo imóveis situados na área do RTID até o cumprimento das etapas estabelecidas. Como medida imediata, os atuais ocupantes do território devem adotar, no prazo de 60 dias, barreiras de contenção para impedir a propagação de defensivos agrícolas por ar e terra, sob pena de multa diária de R$ 10 mil.
O MPF atua na defesa dos quilombolas com base no artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que reconhece o direito à propriedade das terras tradicionalmente ocupadas por essas comunidades. A decisão, ao validar o RTID e estabelecer diretrizes para a titulação, representa um passo importante para o reconhecimento formal do Quilombo Mesquita e para a garantia da permanência da comunidade em seu território.