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Quebra de Contrato: confessando os pecados

Adria encosta a porta e senta-se com o avô sobre a cama.

– Por que você nunca me contou a sua vida toda, vovô?

– Porque têm coisas que eu fiz questão de esquecer, Adria.

– Eu não entendo como alguém que se torna rabino pode perder a fé. Que parte da sua vida você ainda não me contou e que eu preciso saber?

Jacob encara Adria.

– Eu não vou te julgar, “Harold”, somos uma equipe, lembra?

– Sim, sem “Harold”, o “Calvin” não existe. Sorri Jacob.

Um breve minuto de silêncio. Ambos se encaram. Jacob suspira.

– Meu pai era muito religioso, assim como o seu pai, Adria.

Adria senta-se na beira da cama.

– Desde que nasci, respirei os assuntos da Torá; cumpri com todas as etapas que manda a nossa tradição, ou seja, fui circuncidado no oitavo dia; trinta e um dias depois, cumpri o *“pidion haben”; aos treze anos, fiz o meu barmitzvá e depois, me formei rabino pela Yeshiva Chachmei Lublin…

– E então?

– E então, que nada disso foi suficiente para que eu não experimentasse muita dor e derramasse muitas lágrimas.

– Na Torá está escrito que nós sentiremos dores e choraremos, mas Deus estará sempre conosco.

– Mas também está escrito, que aquele que seguir seus mandamentos e preceitos sairá vitorioso. E nós não vencemos.

– Mas você sobreviveu, vovô. Isso não é uma vitória?

– Sobrevivi graças ao acaso.

– Mas você não considera isso um milagre de Deus?

– No que eu sou melhor que os outros para ter sobrevivido, Adria?

– Você teve o livre arbítrio para escolher os caminhos que te salvaram, graças a Deus.

– Não há homens livres numa guerra, Adria. Na vida, podemos escolher pelo bem, mas na guerra, somos punidos por escolher.

– Mas Deus escolheu salvar você.

– Adria, vou te contar uma história que nunca contei a ninguém.

Adria abre mais os olhos, denotando surpresa com o que será relatado.

– Quando estávamos no gueto, antes da partida para o campo, eu realizava uma cerimônia de barmitzvá, quando os alemães invadiram o recinto e mataram o menino e seus pais na minha frente.

Do lado de fora, Elias e Judith escutam a conversa de Adria e Jacob, pela porta que está entreaberta.

– Você sabia disso, Elias? — cochicha Judith ao ouvido de Elias.

– Não. O passado dele, sempre foi um grande mistério para mim e para mamãe.

Jacob e Adria continuam a conversa.

– Mas você não teve culpa, vovô! A culpa foi dos alemães.

– Não é verdade. A família foi punida pela minha escolha, e eu fui punido por acreditar que em Deus, estaria a nossa salvação.

– E você não vai à sinagoga porque tem medo que Deus cobre de você a vida daquela família?

Jacob franze a testa.

– Deus não pode me cobrar por nada. Eu sim, posso lhe cobrar.

Adria se surpreende.

– Você cobraria alguma coisa de Deus?

 – Sim, eu posso lhe cobrar pela vida de milhões de inocentes; por todos os religiosos que morreram acreditando que a salvação viria dos céus; pela vida de meus pais; dos meus filhos; da minha esposa; do meu querido irmão Haim.

Jacob chora e sua voz fica embargada.

– Mas eu não vou cobrá-lo, e não faço isso, porque não há a ninguém à quem cobrar. Não existe Deus algum para me cobrar ou para eu cobrar coisa alguma.

– Eu tenho uma ideia muito boa.

– Qual?

– Por que você não vai só por hoje, à sinagoga, de dedos cruzados?

Jacob sorri.

– Não Adria. Não poderia fazer isso em respeito aos inocentes que se…

Elias invade o quarto, seguido por Judith.

– Respeito? Que respeito você teve quando despiu e empurrou inocentes para a câmara de gás?

– Não fale do que você não sabe, Elias! — Judith interfere.

– Do que ele tá falando, vovô? — pergunta Adria para Jacob.

– Então, porque não fala você mesmo o que Adria ainda não sabe!

Jacob tem o olhar perdido.

– Explique a ele o que você fazia como sonderkommando! Chega de sombras. Revele sua vida para todos nós, papai!

– Elias! — implora Judith.

Um silêncio sepulcral toma conta do quarto.

– O que é um sonderkommando, vovô?

Jacob senta-se e começa chorar compulsivamente. Nem Elias nem Judith ou Adria fazem qualquer gesto, apenas observam Jacob que, alguns segundos depois, ergue-se e encara os três. Seus olhos estão vermelhos, seu rosto molhado pelas lágrimas que derramou. Ele pega um lenço do bolso e assoa o nariz. Então olha para Adria.

– Eu só sobrevivi ao campo, porque não fui forte o suficiente para escolher pela morte. Porque aceitei empilhar cadavers; porque despi meu próprio irmão para a câmara de gás; porque arranquei dentes de pessoas mortas e as conduzi amontoadas em carroças, ou as carreguei nos meus próprios braços para as fogueiras incandescentes. E aceitei isso, porque assim, no final do dia, conseguia algumas calorias a mais do que todos os outros que morriam de fome, embora compartilhasse isso com Haim.

Adria arqueia as sobrancelhas, comprime os lábios e deixa uma lágrima escorrer pelo rosto.

– O que você quer, Elias, que eu tenha vergonha do meu passado? Pois muito bem, eu me envergonho do meu passado! Me envergonho de cada migalha de pão; cada prato de sopa rala; cada cigarro que fumei Escondido; cada momento de alívio que me permiti ter em troca do trabalho sujo que fiz. Mas não me arrependo de ter testemunhado contra Deus em um tribunal parecido com este, que agora você me impõe.

– Não sou eu quem o julga, papai. Mas a sua consciência. Você está penalizando Adria pela única coisa que se orgulha de ter feito. E agora culpa Deus, por tê-lo deixado escapar do campo, por ter permitido que refizesse a sua vida e a sua família.

– Eu não escapei do campo com a permissão de nenhum Deus. Mas porque tirei Ele da minha vida. Foi porque não fiquei esperando de braços cruzados por um milagre, que eu consegui correr dos tiros dos alemãs. Eu só consegui escapar porque me desfiz do peso de Deus sobre os meus ombros. Só assim é que eu consegui alcançar o bosque e me salvar.

Elias e Judith aproximam-se e abraçam Jacob e Adria.

– Somos uma família, papai. Ainda dá tempo de recomeçarmos o que deixamos para trás. — diz Elias.

Sete badaladas no relógio carrilhão chamam-nos para a realidade.

– Vamos, Adria, vá tomar seu banho e se arrumar que todos nós precisamos estar prontos para a cerimônia. Já está na hora.

– Relaxe Elias, vai dar tudo certo, *“Baruch Hashem”.

O telefone toca.

*PIDION HABEN – a redenção do primogênito, acontece quando um bebê tem pelo menos 31 dias de vida, e envolve sua recompra de um sacerdote (veja em Números 18:15).

*BARUCH HASHEM– Bendito seja o Nome.

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